Caminho percorrido por Alaíde Costa em 86 anos de vida e de música inspiram álbum de inéditas “O que meus calos dizem sobre mim”
Produzido por Emicida, Marcus Preto e Pupillo, disco tem Erasmo Carlos, Ivan Lins, João Bosco, Joyce, Céu, Nando Reis, Fátima Guedes e Guilherme Arantes entre os compositores; direção musical é de Pupillo
Pode-se dizer que “O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim”, álbum que Alaíde Costa lançou hoje, 19 de maio, é o primeiro trabalho da cantora e compositora carioca cujo repertório foi todo pensado especificamente para ela. Não apenas para se vestir de sua voz tão singular. Mas também para se calçar de sua personalidade, em que doçura e força se equivalem e se complementam.
Em alguma medida, o álbum vale como uma espécie de biografia musical da artista carioca e de seus 86 anos de caminhada – quase todos eles dedicados à música. “O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim” é produzido por Emicida, Pupillo e Marcus Preto, que também assina este texto de apresentação, e tem direção musical de Pupillo.
Das oito canções gravadas, sete foram escritas especialmente para este projeto, unindo compositores de diversas gerações. Joyce Moreno e Ivan Lins abrem parcerias com Emicida, uma máquina de fazer letras tão poéticas quanto contundentes. O veterano Erasmo Carlos compõe sua primeira canção a quatro mãos com o jovem Tim Bernardes, outro gigante gentil, 50 anos mais novo. Juntos, os irmãos Céu e Diogo Poças escrevem aquela que se tornaria a faixa de abertura do álbum. Canções inteiras, e muito alaideanas, chegam de Fátima Guedes e Guilherme Arantes. E João Bosco vem com a única não inédita do álbum, com letra do filho Francisco Bosco. A essas sete, junta-se Tristonho, melodia de Alaíde Costa letrada por Nando Reis que já foi lançada como single em abril.
Nossa ideia inicial era fazer um álbum que sublinhasse a grandeza de Alaíde Costa não apenas como intérprete ligada à Bossa Nova, movimento que surgiu para o Brasil ao mesmo tempo em que a própria artista no final da década de 1950. Mas, sobretudo, como a voz que transitou, quase sempre à margem do grande público, pelos mais nobres ambientes da nossa música popular.
Alaíde é a única mulher na ficha técnica do clássico “Clube da Esquina” (1972), de Milton Nascimento e Lô Borges. Compositora sofisticada, escreveu canções com Vinicius de Moraes e Geraldo Vandré, entre outros grandes. Interpretou como ninguém as obras de Hermínio Bello de Carvalho e Johnny Alf. Atravessou os anos 1980 lançando álbuns independentes, já que gravadoras queriam dela o que ela não queria dar – e fazer concessão nunca foi uma possibilidade para Alaíde. Por isso, pagou o preço de ver a repercussão de seus trabalhos minimizada. Mas, em contrapartida, pôde criar uma obra à sua imagem e semelhança, mesmo que limitada aos padrões modestos de artista independente – isso nos tempos em que o conceito de indie ainda nem existia.
O impulso inicial de “O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim” se deu ainda no primeiro ano da pandemia, quando o produtor Thiago Marque Luiz divulgou a live que ela faria sobre a obra de Johnny Alf (1929 – 2010) nas plataformas do Museu Afro-Brasil. Animado, printei a peça de divulgação da live e enviei por whatsapp para vários amigos. Muitos responderam com grande entusiasmo (como a cantora Céu, por exemplo). Mas nada se comparou ao calor do áudio-resposta de Emicida: “Porra, mano, essa live é meu presente de aniversário! Mentira: Alaíde Costa cantando Johnny Alf! Cê tá maluco, mano! Que lindo, que lindo, que lindo, que lindo! Apenas obrigado. Já é meu presente de aniversário”.
Minha cabeça fritou por dois dias. Emicida é o cara mais ocupado do planeta, com show, filme, livro, disco, game, programa de TV e sabe-se lá quantas coisas tarefas, todas rolando ao mesmo tempo. Mas não deixei de falar o que tinha pensado. Escrevi: “Meu mano, tô com uma ideia maluca aqui. E se a gente fizer um disco foda da Alaíde? Não falei com ela, nem sei se ela quer. Mas eu sei que eu quero. E ia ser foda ter você pra dividir as ideias. Sei lá, pensa aí. A gente tem essa galera viva ainda, mano! Sei que cê tem muito o que fazer, mas fiquei com vontade de sugerir essa maluquice”. A resposta veio por áudio: “Mano, se eu falar pra você que desde que vi o vídeo eu tô pensando a exata mesma coisa você bota uma fé?”. Liguei imediatamente para o Thiago Marques Luiz, minha ponte com Alaíde (que não me conhecia), e ele passou o recado. Logo veio o áudio da própria: “Oi, Marcus! O Thiago já me contou a história toda. Eu tô dentro, né? Claro!”. Começamos.
Saí pedindo melodias para vários compositores do universo de Alaíde – Joyce, Ivan Lins, Guinga, João Donato, Marcos Valle e Francis Hime, entre outros – a fim de que Emicida colocasse as letras. Também pedi composições para Fátima Guedes, João Bosco, Erasmo Carlos, Guilherme Arantes e Céu. Todos mandaram. E o repertório foi ficando tão farto e indispensável que decidimos desmembrá-lo em dois – quem sabe três – discos. Este texto é para falar do primeiro, “O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim”. Vamos a ele.
Já em meu contato inicial, Joyce Moreno pediu que invertêssemos a lógica: queria musicar versos de Emicida. Ele já tinha uns rascunhos dos telefonemas que vinha fazendo para Alaíde a fim de “entrevistá-la” para desenvolver a poética do álbum com a maior fidelidade possível ao universo dela. Enviamos Aurorear e Joyce devolveu a canção pronta em dois dias. Era a primeira música a chegar e ela já tinha em si todo o espírito do que o álbum queria abraçar, poética e conceitualmente: o olhar retrospectivo sobre o próprio caminhar em 80 e tantos anos de estrada percorrida, olhar este que consegue ser ao mesmo tempo crítico e otimista, melancólico e realizado – tudo embalado em uma belíssima melodia. Não à toa, veio dela o título: “O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim”. Também não é por acaso que ela encerra o álbum, como um ponto final.
Foto acima: Emicida, Alaíde Costa e Marcus Preto
Na abertura está Turmalina Negra, faixa que carrega muitas relações com Aurorear ao trazer a metáfora da pedra rara, segura e intacta que assiste às transformações do mundo em volta sem se movimentar. Canções-irmãs. Depois da mensagem de Céu a respeito da live de Alaíde cantando Johnny Alf, ficou irresistível pedir uma canção para ela. Céu demorou quase um mês para terminar Turmalina Negra (que se chamava “Pedra Preciosa”, mas mudou de nome no último momento), pois queria lapidar ao máximo letra e melodia. Convidou o irmão, Diogo Poças, para fazer a harmonia.
Abertura e encerramento ganharam arranjos de metais de Antonio Neves. E aqui, é preciso abrir parênteses. Quem trouxe Antonio foi Pupillo (que aliás é marido de Céu). Pupillo assina a direção musical do álbum. E entrou no time convidado por ele mesmo. Quando soube o que estávamos fazendo, me intimou com algo como: “Nem quero saber, me chama pra fazer esse disco ou nunca mais falo contigo”. Principal parceiro meu em álbuns de Gal Costa, Nando Reis, Erasmo Carlos e outros, era o nome que eu mais queria por perto. Consultei Alaíde e Emicida – ambos adoraram. Além da direção, Pupillo toca bateria e percussão por todo o álbum. O contrabaixo acústico ficou sob os cuidados de Fábio Sá. Leo Mendes completa a banda base no violão de náilon. Fecha parênteses.
Mas Pupillo não foi o único a se convidar para “O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim”. Em um telefonema sobre outros assuntos, contei para Nando Reis que estávamos construindo repertório para um álbum de Alaíde Costa. Nando ficou realmente mexido, esqueceu todos os outros assuntos e disse: “Me põe dentro! Ouço Alaíde desde que nasci, ela é a cantora preferida de meu pai”. Pedi uma melodia à própria Alaíde. Ela enviou uma que tinha na cabeça desde os anos 1960. Nando fez a letra em poucos minutos. Tristonho foi lançada como single de “O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim” em abril.
Ivan Lins seguiu nossa lógica e enviou uma melodia, nomeada então de Balada Arpejada, para que Emicida construísse os versos sobre as notas. Com a letra definitiva, ela se transformou em Pessoa-Ilha. É, sem dúvida, a canção mais política do álbum. Uma pequena obra-prima que promete ganhar inúmeras visitas futuras, tanto pela própria Alaíde Costa quanto por outras vozes. O arranjo de metais é do maestro Tiquinho.
Primeira parceria do veterano Erasmo Carlos com o jovem Tim Bernardes, Praga remete ao início da carreira de Alaíde Costa, quando era crooner do Dancing Avenida, na avenida Rio Branco, no Centro do Rio de Janeiro dos anos 1950. A melodia foi feita por Erasmo especialmente para o álbum de Alaíde e depois ganhou letra de Tim. A faixa tem arranjo de metais de Eduardo Neves (pai de Antonio), fundador do Pagode Jazz Sardinha’s Club e autor de arranjos para Tim Maia, Zeca Pagodinho, Milton Nascimento e outros.
Figura tão importante no universo de Alaíde, a cantora e compositora fluminense Fátima Guedes enviou uma canção inteira, Nenhuma Ilusão. É um exemplar perfeito da grandeza de Fátima na criação de grandes canções de desamor, de amor findado, que ficou apenas na memória, aquele que se faz presente pela ostensiva ausência. Outra especialista no assunto, Alaíde Costa debulha a interpretação. O mestre Jota Moraes participa da faixa tocando vibrafone. E o arranjo de sopros fica por conta de Henrique Albino.
Ambos – Henrique e Jota – também se destacam no arranjo de Berceuse, letra e música de Guilherme Arantes escrita especialmente para a voz de Alaíde. O título remete às “canções de berço” da música erudita – também chamadas de lullaby, acalanto e canção de ninar no universo popular – muito presentes nas obras de Chopin, Liszt e Balakirev. A letra está entre as mais líricas da vasta lavra de Guilherme e comprova a sensibilidade do autor para decifrar a alma da intérprete: “Tua inocência há de guiar na escuridão do mundo”.
João Bosco enviou duas canções para escolhêssemos. Uma delas, completamente inédita. E outra bem pouco conhecida, pois, embora lançada pelo autor na trilha da novela “A Lei do Amor” em 2016, nunca constou de um álbum de João. Alaíde ouviu as duas e não quis saber de ineditismo: se apaixonou definitivamente pela segunda, Aos Meus Pés, e a pegou para si. “Essa música sou eu”, ela disse várias vezes durante todo o período de gravações. Pois a letra de Francisco Bosco parece inspirada na biografia de Alaíde: “O meu caminho eu mesma fiz/ Não foi ninguém que me apontou/ Eu me virei sozinha/ Comi o pão todinho que o diabo amassou/ Eu não faço fiado/ Mas dou sempre tudo por amor”.
Essa é Alaíde Costa, aos 86 anos, vivendo o melhor de sua história. Beleza absoluta é observar.
MARCUS PRETO / Produtor musical – Maio de 2022
Com informações: Assessoria de Imprensa | Alaíde Costa
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