A “Negra Ópera” de Martinho

Em disco com três canções inéditas, Martinho da Vila vê a beleza no drama, inspirando-se na ópera. E, no repertório lançado no dia 12 de maio, celebra Zumbi e afirma a liberdade e resistência negra

 

Depois de quase quatro minutos nos quais reina a orquestra regida pelo maestro Leonardo Bruno, ouve-se pela primeira vez a voz de Martinho da Vila, que diz apenas, com sua suavidade categórica: “Zumbi dos Palmares, Zumbi”. É Zumbi, portanto, que Martinho convoca como o mestre-de-cerimônias de sua “Negra Ópera”, como ele batiza seu novo disco, lançado neste dia 12 de maio de 2023 — véspera da data em que se celebra o aniversário da Abolição, ou ao menos da primeira Abolição de outras que ainda estão por vir…

 

A liberdade e a resistência encarnadas na figura de Zumbi aparecem, assim, como os grandes pilares sobre o qual se ergue o disco. Não por acaso, a primeira canção que Martinho entoa, logo após a já citada peça orquestral “Abertura Negra Ópera”, é exatamente “Heróis da liberdade” (Mano Décio da Viola/ Manoel Ferreira/ Silas de Oliveira). E, também não por acaso, o cantor introduz a faixa lembrando os poetas Solano Trindade e Cruz e Sousa, que “falavam muito em liberdade”.

 

No canto cadenciado de Martinho, o clássico samba do Império Serrano soa como celebração serena. A dinâmica do arranjo, que vai do tamborim sozinho com os coros no início até a batucada mais marcada do fim, acompanha o mesmo espírito.

 

No avançar do disco, a serenidade ganha sombras, contornos ainda mais densos, dramáticos mesmo — a despeito do canto macio de Martinho. Afinal, ele explica, é uma ópera:

 

— Meus discos são sempre muito alegres, queria fazer algo diferente. Como gosto muito de ópera, pensei em fazer a minha ópera, com uma boa dose de dramaticidade. E negra, porque as músicas são fundamentalmente ligadas a questões negras, os músicos são praticamente todos negros — afirma o cantor sobre o disco produzido por Celso Filho, Martinho Antônio e Pretinho da Serrinha.

 

A religiosidade afro-brasileira e a ancestralidade se mostram em “Timbó” (Ramon Russo), sobre o personagem descrito como “um grande feiticeiro”. O rapper carioca Will Kevin divide os vocais com Martinho e projeta as sabedorias antigas em direção ao futuro, criando versos como “Tudo que vai ao chão vai voltar melhor”.

 

A faixa seguinte, “Exu das sete”, vai ainda mais fundo no terreiro, com o arranjo todo apoiado na percussão, reproduzindo uma gira. Ela é uma das três inéditas do disco, composta recentemente por Martinho. Preto Ferreira, filho de Martinho, canta com o pai na gravação.

 

— Eu sou católico, e como bom católico brasileiro, tenho um pé na umbanda — diz Martinho. — Como no catolicismo cada pessoa tem seu anjo da guarda, nas religiões de origem africana nós temos um exu. O meu é o Exu das Sete, então fiz essa música. Chamei Preto pra cantar comigo porque ele é messiânico. Achei que seria bom pra música e pra ele, gosto de incentivar a convivência das religiões.

 

Lançada em 1983 no disco “Novas palavras”, “Linda Madalena” foi composta por Martinho há cerca de 60 anos, quando ele dava seus primeiros passos no samba na Aprendizes da Boca do Mato. Ela conta a história de um triângulo amoroso “resolvido” com a morte de um dos vértices graças a “uma macumba” feita por Madalena — novamente o feitiço como elemento da “Negra Ópera”. Com sabor de samba rural, ela conta com a sanfona de Kiko Horta.

 

A morte marca presença em algumas das canções do disco:

 

— Depois que eu vi que tinha bastante morte. Mas tá de acordo com a ópera. Tem uma definição de ópera que diz que quanto mais feia a história, mais bonita é a opera — brinca Martinho.

 

“Malvadeza Durão” (Zé Ketti), na sequência, traz outra morte, cantada sobre o arranjo elegante e moderno, centrado no piano de Maira Freitas, filha de Martinho. Outra filha do cantor, Mart’nália, faz dueto com o pai na faixa. E presta um descontraído tributo a ele num breve diálogo no qual pega emprestado o verso “Eu sou o samba”, de outra canção de Zé Ketti, para dedicá-lo a Martinho: “O samba é tu”, ela diz.

 

“Acender as velas” (também de Zé Ketti), outra história de assassinato no morro, é cantada apenas sobre o violão magistral de Cláudio Jorge. O convidado da faixa é o cantor Chico César, num dueto tão ajustado que faz pensar em porque ele não aconteceu antes. Não por coincidência, neste dia 13 de maio, data da Abolição, chega, às 12h, o clipe da canção no YouTube.

 

Outra inédita do disco, “Dois de Ouro”, sobre a história real do capoeirista baiano, é também da safra recente de Martinho. O compositor incorpora a linguagem da capoeira de maneira tão orgânica que faz parecer que seu refrão é ancestral: “Ê, berimbau/ Uma corda de aço e um arco de pau”.

 

A terceira inédita da “Negra Ópera” é “Diacuí”, baseada em outra história real. No caso, a tragédia da indígena que nos anos 1950 se casou com um sertanista, engravidou e morreu no parto.

 

— Fiquei pensando numa história de amor dramática para pôr no disco e lembrei de Diacuí — conta Martinho. — Eu li a história nos jornais na época, me causou muita emoção, e aí fiz esse samba, nos anos 1960. Estava guardado desde então. E como o drama indígena se aproxima bastante do drama do negro, achei que ficaria bom pôr a música no disco.

 

“Mãe solteira” (Wilson Batista/ Jorge de Castro), sobre a mulher que se suicida pondo fogo no próprio corpo por “vergonha de ser mãe solteira”, ganha leitura à altura de seu drama. Martinho a canta acompanhado apenas do contrabaixo acústico tocado com arco por João Rafael.

 

Outra recuperada de um disco antigo de Martinho (no caso, “Coração malandro”, de 1987), “A Serra do Rola Moça”, poema de Mário de Andrade musicado pelo compositor da Vila, contra outra história trágica, da morte de um casal num despenhadeiro. Com sabor rural, ela tem como convidado Renato Teixeira, que Martinho conhece desde o histórico Festival da Record de 1967, no qual os dois eram concorrentes.

 

Talvez a mais triste de todas, e interpretada assim por Martinho, “Iracema” (Adoniran Barbosa) encerra a “Negra Ópera”. O personagem lamenta o acidente que levou a vida da mulher, seu grande amor, que “atravessou contramão”. Um drama que Martinho trata como negro.

 

— Adoniran não era branco, não — crava Martinho, referindo-se talvez ao universo marginalizado que o paulista cantava.

 

Na gravação, a beleza do arranjo torna tudo ainda mais triste — e sua tristeza torna tudo ainda mais belo, confirmando o que Martinho afirma sobre a natureza da ópera.

 

 

Texto acima Por Leonardo Lichote

 

Foto: Leo Aversa 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Com informações:  Assessoria de Imprensa – Sony Music

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