Anna Setton lança o álbum “Onde Mora o Coração”
Música feito casa, feita de casa
Em ‘Onde mora meu coração’, Anna Setton canta, acompanhada somente de seu violão, artistas como Caetano Veloso, Dona Ivone Lara e Duke Ellington. A lenda cubana Omara Portuondo faz com ela o único dueto do álbum, idealizado a partir das mais de 70 lives que a cantora paulistana comandou ao longo da pandemia
Leonardo Lichote
Em que lugar a contemplação da praça vazia mineira em “Ponta de areia” conversa com a contemplação dos llanos (planícies) venezuelanos cheios de vida e de morte em “Tonada de luna llena”? Ou que jardim é esse onde se ascende a doce flor da esperança de “Alvorecer” e a bruta flor do querer de “O quereres”? Difícil cravar essas coordenadas no mapa, mas pode-se buscar no violão uma bússola. É sozinha com ele que Anna Setton caminha por canções como essas — e outras de compositores como Djavan, Toninho Horta e Duke Ellington — em “Onde mora meu coração”, seu segundo disco.
Bússola-violão na mão, Anna começou a procurar seu disco-lugar sem nem saber. Como todos no planeta, a cantora teve os planos atropelados em 2020 com a chegada da pandemia de Covid-19 e a quarentena que se seguiu. Àquela altura, Anna tinha encerrado a turnê de seu primeiro disco (“Anna Setton”, de 2018), que passou por Europa e Ásia, e pensava no futuro. Estava com estúdio reservado para gravar o que seria seu segundo trabalho fonográfico, um EP em tudo diverso de “Onde mora meu coração” — como na estreia, o repertório seria de canções próprias, e ela teria a companhia de uma banda. Teve que adiar tudo.
Para se manter próxima da música e do público, começou a fazer lives — foram mais de 70 sessões desde o início da pandemia.
— Comecei a tirar músicas que gostava, tocar, as pessoas responderam muito bem… Nesse processo, começou a naturalmente a vir a ideia: por que não fazer um disco dessa forma?
— lembra a cantora paulistana, que convocou então Swami Jr. para produzir o disco (eles já haviam trabalhado juntos no álbum de estreia).
Anna e Swami se lançaram então na tarefa de escolher o repertório (são dez canções, além de “Bonita”, de Tom Jobim e Ray Gilbert, lançada como single). O primeiro critério era, naturalmente, o desejo de interpretar determinada música. Porém, mais do que sentimentos, um disco é feito das notas, respirações e timbres que vão transmitir esses sentimentos. Por isso, entraram no álbum apenas aquelas canções nas quais Anna percebia que estava acrescentando algo próprio, seu.
— Não bastava estar bonito, muitas que estavam lindas eu não gravei — explica a cantora. — Eu tinha que encontrar um jeito de fazer, que não sei bem definir, mas é um jeito que quando encontro eu percebo que encontrei. É um processo, muita tentativa e erro. Várias ficaram no caminho.
“Ponta de areia” (de Milton Nascimento e Fernando Brant) foi uma das que chegou ao disco. É com ela que Anna abre “Onde mora meu coração”, com a voz à frente, valorizando a melodia acidentada e fluida, “estrada natural”. O violão comenta discreto, em arpejos. A presença da canção ali, de cara, reflete o movimento que a cantora fez na direção da música mineira (especialmente da geração “Clube da Esquina”) ao longo de 2020. Não à toa, o álbum inclui ainda Toninho Horta (“Morena bonita”, parceria com Felipe Cordeiro) e Nelson Angelo (“Fazenda”).
— Inicialmente, tive um pouco de medo de fazer “Ponta de areia”, mas gostei muito de tocá-la. Quando a gente canta uma canção grande assim, tem que reverenciar, e ver o que resulta, se vai comunicar. Foi o que fiz — conta Anna. — Queria ter também alguma do Toninho Horta, por muito tempo foi “Beijo partido”. Mas notei que, quanto mais bonito ficava, mais ficava parecida com o jeito dele. Então encontrei “Morena bonita” e adorei. Já “Fazenda” foi a primeira que defini que estaria no disco. Gosto dessas canções que possuem uma força estranha.
De Djavan, Anna escolheu “Seduzir” — que nunca tinha tocado — depois de ouvi-la no rádio com a filha (“Amo músicas que falam do ato de cantar”). “Sangue latino” (de João Ricardo e Paulinho Mendonça), um clássico do repertório do Secos & Molhados, entrou com uma curiosa citação a “Walk on the wild side”, de Lou Reed — insinuada no violão nos primeiros segundos, mas desvelada apenas minutos depois, no fim da faixa:
— Foi uma conexão puramente musical, percebi que a harmonia permitia essa referência. Se bem que, depois, vi que há uma conversa possível entre Lou Reed e Ney Matogrosso, eles não estão tão longe.
O sangue latino do disco se afirma especialmente em mais outros dois momentos. O primeiro é a já citada “Tonada de luna llena”, do venezuelano Simón Diaz. Anna conheceu a canção em “Fina estampa”, disco de Caetano Veloso de 1994, mas para sua interpretação foi buscar como referência a gravação do próprio autor. A conexão mais forte do disco com a América espanhola, porém, aparece em “Nocturno antillano” (do cubano Julio Gutiérrez). Nela, Anna faz dueto com ninguém menos que Omara Portuondo, lenda da música cubana.
— Swami me apresentou a canção e fez a ponte com Omara (ele trabalhou com ela por anos como diretor musical e violonista) — conta Anna. — Achei perfeita a canção, porque queria algo que fosse do universo dela, pra que ela emprestasse sua voz e ancestralidade de forma natural. É a única que tem o violão de Swami.
Ao norte no mapa, o standard americano “Solitude” (de Duke Ellington, Eddie DeLange and Irving Mills) é visitado com graça — ecoando os anos de Anna cantando na noite paulistana. “Alvorecer” (de Dona Ivone e Delcio Carvalho) traz uma outra atmosfera em sua batucada no tampo do violão, reverência humilde aos tambores do samba. “O quereres” (de Caetano Veloso) entrou pela “letra incrível, porrada” e por ser uma das preferidas do público nas lives.
“Revoada”, por fim, é a única que traz a Anna compositora (parceria sua com seu marido, o pianista e arranjador Edu Sangirardi). De estrutura circular, ela tem o formato de uma oração.
— “Revoada” foi composta em 2018. É uma maneira de falar de todas as mudanças políticas, estruturais, que estamos atravessando, mas de maneira poética — avalia Anna, que vê a canção num lugar especial, como marca de seu interesse em seguir focando em seu trabalho como compositora. — “Revoada” é como um pequeno fio que liga o primeiro disco com o que virá.
Frente a um repertório tão variado, com cada canção movida por uma motivação própria, Anna tem dificuldade em identificar um grande conceito que amarra “Onde mora meu coração”:
— Não sei se consigo identificar. Sei que é muito caseiro. Tem esse olhar que veio da pandemia, esse olhar pra dentro, pras coisas que te constituem, que são suas raízes — diz, sem perceber que desenha, assim, o território que responde as perguntas que abrem este texto.
TRACKLIST
Ponta de Areia
Seduzir
Sangue Latino
Morena Bonita
Fazenda
Tonada de Lunna Llena
O Quereres
Solitude
Revoada
Alvorecer
Nocturno Antillano
Com informações: Produção Anna Setton