Marcos Valle lança o álbum “Cinzento”
Por Marcus Preto
Os primeiros dez ou doze capítulos da discografia de Marcos Valle, desde a estreia em 1963 até pelo menos meados dos anos 1970, apresentaram a incrível metamorfose. Filho imediato da eclosão da Bossa Nova, o artista foi encontrando para si, sobretudo a partir de 1969, um universo absolutamente singular dentro da música brasileira. Disco após disco, ele partiu das descobertas aprendidas na escola de Tom Jobim e João Gilberto e combinou a elas elementos que sempre o influenciou, do Rock, do Jazz, do Pop e da Black Music, entre outras referências que emergiam no cenário mundial. Marcos Valle se tornou então um “gênero” da música brasileira – a exemplo do que também aconteceu com Jorge Ben, João Donato, Milton Nascimento e outros geniais artistas-inventores que não se pareciam com nada a não ser com eles mesmos.
É preciso fazer essa introdução biográfica antes de entrar em “Cinzento”, álbum que Marcos Valle lança agora pela Deck. Isso porque o novo trabalho retoma referências musicais e temáticas do auge daquela metamorfose, materializadas à perfeição no LP “Previsão do Tempo”, lançado em 1973 e cultuado pelas novas gerações. Para além das melodias extraordinárias, aquele álbum trouxe a maturação absoluta dos grooves que se tornaram uma das principais marcas do estilo valleano (e descobertos por DJs ingleses nos anos 1990, o que tornou Marcos Valle presença frequente nas pistas europeias). “Previsão do Tempo” era um disco de pouca instrumentação, mas com cada coisa em seu lugar. Grande parte das letras apresentava referências ao momento político conturbado do país que, em 1973, vivia esburacado em uma ditadura militar.
Pois bem. Agora podemos voltar aos nossos dias. Antes mesmo de surgir todo esse seu conceito estético, “Cinzento” nasceu a partir da presença de Marcos Valle na Deck. O músico passou um tempo frequentando os estúdios da gravadora, e entre uma sessão e outra, o produtor Rafael Ramos, diretor artístico da Deck, jogou a semente: “Eu ficaria imensamente feliz se você fizesse um disco aqui. Coloco o estúdio e todos os instrumentos que tenho a sua disposição”. Entre os referidos instrumentos, um piano acústico, um Rhodes e um órgão com caixa Leslie, que resulta naquele som característico dos 1970 que fez a história de Marcos Valle.
Naquele mesmo período, por razões proféticas, Rafael Ramos reeditava pela Polysom, dentro da coleção “Clássicos em Vinil”, justamente o “Previsão do Tempo”.
Marcos pulou de cabeça na criação do novo repertório. Imediatamente, surgiram quatro melodias. E ele gostou de todas. Mas e as letras? Bem, se “Sempre”, o álbum que acabara de fazer para os gringos, era 100% autoral, este iria se pautar pelas parcerias. Foi então procurar, entre os jovens artistas que admira. De cara, se lembrou de Moreno Veloso, Bem Gil, Domenico Lancellotti e Kassin. Os quatro toparam de imediato entrar na viagem e escreveram os versos de, respectivamente, “Redescobrir”, “Se Proteja”, “Pelo Sim, Pelo Não” e “Lugares Distantes”, e era esse o caminho.
A ordem de chegada das novas composições foi exatamente a que segue. Após as melodias enviadas para os quatro jovens compositores, Marcos se lembrou de “Raros Rastros”, uma parceria dele com Zélia Duncan. Fizeram uma música em 2010, mas ela continuava inédita. Até agora. Outra melodia foi enviada na sequência ao irmão Paulo Sergio Valle, ele teria que estar presente no novo álbum, é claro. Paulo Sergio rapidamente enviou os versos de “Nada Existe” e garantiu sua assinatura no novo disco. Em seguida, Marcos criou um samba em 7 por 8, ritmo que lhe remeteu de imediato a outra parceria que havia feito com Jorge Vercillo. Telefonou para o amigo e fecharam mais uma, “Só Penso em Jazz”.
A melodia de “Posto 9” já existia. Havia sido gravada no álbum instrumental “Jet-Samba”, de 2005, pelo qual Marcos Valle ganhou um Prêmio da MPB. Como aquele trabalho havia sido lançado pela gravadora Dubas, Marcos pensou em chamar o dono da empresa para fazer a respectiva letra. Irresponsabilidade nenhuma, já que se trata simplesmente do craque Ronaldo Bastos, que aqui faz uma declaração de amor ao famoso ponto na praia de Ipanema.
Autor deste texto de apresentação de “Cinzento” que você lê agora, fiz a ponte entre Marcos Valle e Emicida assim que soube que haveria um trabalho novo do autor de “Previsão do Tempo”. Sabia que o entendimento entre os dois artistas seria imediato. E até supus que o rapper paulista faria o que ele sempre faz: sintetizar todo o conceito elocubrado em apenas uma frase – ou, nesse caso, em uma única palavra – que acabaria por batizar o álbum (foi assim no “Tribunal do Feicebuqui”, do Tom Zé, e em “A Gente Mora no Agora”, de Paulo Miklos). Aconteceu. “Cinzento” é a primeira parceria entre Marcos Valle e Emicida – que, aliás, participa da gravação, em dueto. Com essa música terminada, os parceiros combinaram a segunda. “Reciclo” ficou pronta com a mesma rapidez e abre o disco. Detalhe: a relação entre os dois compositores se deu com tal fluência que Marcos Valle acabou participando também, como instrumentista, de “Pequenas Alegrias da Vida Adulta”, uma das faixas de “Amarelo”, álbum lançado por Emicida no final de 2019.
À grosso modo, as letras de “Cinzento” dividiram o repertório entre canções políticas e canções de amor. Mas não há qualquer contradição no convívio entre esses dois polos. Segundo palavras do próprio Marcos Valle, “no momento que a gente está vivendo agora, de tanto ódio, de perseguição às artes, de divisões entre pessoas da mesma família por discordâncias políticas, achei que o nome ‘Cinzento’ cabia perfeitamente – e que só o amor vai poder resolver isso”.
Marcos Valle acrescentou às dez parcerias de “Cinzento” duas músicas instrumentais, de autoria dele. “Lamento no Rhodes” tem esse nome porque é toda tocada no Fender Rhodes e sua melancolia soou ao compositor como uma espécie de lamento. Para fechar o álbum, criou uma música curta, pensada para o naipe de metais, que chamou de “Sem Palavras”. Esse nome tem duplo sentido: a) sem palavras por ser uma música instrumental; b) sem palavras porque a censura cala o artista que a crítica.
Duas figuras fundamentais na concepção do som de “Cinzento”, o baixista Alberto Continentino e o baterista Renato “Massa” Calmon estão presentes em todas as faixas. Os dois músicos estiveram ao lado de Marcos Valle em todo o processo de criação de grooves e, segundo o autor, “vestiram a camisa do disco”. Continentino ainda tocou violão em duas faixas (Marcos assumiu o instrumento em outras quatro). Paulinho Guitarra participou na canção “Cinzento”, Jessé Sadoc em “Se Proteja”, “Só Penso Em Jazz”, “Sem Palavras” e Patrícia Alví em “Pelo Sim, Pelo Não”.
O álbum, conforme o planejado, foi gravado no estúdio Tambor, da Deck. Depois, ganhou alguns sintetizadores – como o minimoog, o arp e o oberheim, todos característicos dos anos 1970, gravados pelo Marcos no Marini Studio, de Kassin.
A capa partiu de uma sugestão de Rafael Ramos: uma foto em que Marcos Valle surgisse enrolado em um plástico, como se estivesse preso, para representar a arte aprisionada desses momentos em tom de cinza. O compositor comprou imediatamente a ideia, mas algo o incomodava na imagem enclausurada de si mesmo – logo ele que, tantas metamorfoses depois, segue fazendo questão de não se deixar aprisionar a qualquer época ou estilo. A cantora, e, também sua mulher e empresária Patrícia Alví, chegou com a solução: que tal se na contra capa ele surgisse no exato momento em que rasga o plástico que o aprisiona? Fecharam nisso. A foto libertadora é de Jorge Bispo.
“Cinzento” já está disponível nos aplicativos de música e também será lançado em CD e vinil. Os shows de lançamento acontecem dia 18 de janeiro, no CCBB (Rio de Janeiro) e 14 de fevereiro, na Audio (São Paulo).
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